Língua Portuguesa

1 CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA
 
Ao longo da sua existência, os homens aprenderam a interagir por meio dos gestos e da fala, aprenderam também a registrar suas ideias por símbo­los pictográficos1 e ideográficos2, ou seja, estabeleceram signos que contribuíram para o aprimoramento da comunicação entre eles. Assim, a linguagem escrita foi criada a partir da necessidade de interação com o outro e de socialização dos conhecimentos produzidos.
Por volta de 3.000 a.C, com a contribuição dos sumérios, dos egípcios, dos fenícios e dos semitas, dentre outros, tivemos o início da construção do alfabeto3, que conquistou a civilização e contou com a produção do papel e, posteriormente, com a invenção da imprensa. Esse processo de construção histórica da linguagem escrita foi marcado pela criação de convenções (regras) para organizarem o seu uso.
O ensino do sistema da escrita, bem como o ensino de língua, relaciona-se aos modos como o homem compreende a si mesmo, a linguagem, o universo em que se situa, e disso decorrem as diferentes concepções de linguagem, de língua, de ensino e de alfabetização que foram produzidas ao longo da história. Entre essas concepções, destacamos aqui três delas que exerceram (e ainda exercem) influências no ensino: primeiro, a concepção de lingua­gem como expressão do pensamento; segundo, a concepção de linguagem como instrumento de comunicação; e terceiro, a concepção interacionista de linguagem. Vejamos alguns aspectos que caracterizam cada uma delas.
A primeira foi a concepção de linguagem como expressão de pensamento, a qual se sustentou na tradição gramatical grega, orientada pelo idealis­mo inatista e pela Gestalt; compreendia-se a linguagem como dom individual (que está no indivíduo), que aprendia por maturação, e que se expressava pelos "insights" ou por "saltos", "clics", ou descobertas repentinas. Defendia-se a ideia de que a linguagem é produzida no interior da mente de indivíduos racionais. Logo, se o indivíduo não falava bem, era porque não pensava. Por essa razão, passou-se a primar pela clareza e precisão dos falantes, caracterís­ticas essas que só seriam atingidas pelo domínio de regras do bem falar e do bem escrever. Nesse contexto, compreendia-se que as capacidades humanas eram determinadas hereditariamente. Em termos pedagógicos, nada se poderia fazer para que o indivíduo aprendesse. Nessa perspectiva, as diferenças sociais seriam decorrentes de transmissão hereditária.
Assim, o ensino de língua pautava-se na gramática normativa ou prescritiva e, em geral, distanciava-se de atividades de leitura e de produção de textos socialmente significativos. Em outras palavras, era o ensino da gramática pela gramática, completamente descontextualizada. Na alfabetização, pre­valeceram os métodos sintéticos, que partiam da aprendizagem de letras (primeiro as vogais, depois as consoantes), sílabas (das famílias silábicas simples às complexas), palavras, frases e textos (ou pseudotextos), que deveriam ser memorizados, sem que tivessem significado para a criança.
A segunda concepção é a de linguagem entendida como instrumento de comunicação, na qual a língua era vista, de acordo com Geraldi (1985, p. 43), como um "código (conjunto de signos que se combinam segundo regras) capaz de transmitir ao receptor uma certa mensagem", código esse estrutu­rado por critérios fonéticos, morfológicos e sintáticos. Caberia ao falante apropriar-se desse código para poder transmitir uma mensagem a outrem. Nesse caso, considerava-se a linguagem do ponto de vista do locutor, como se ele estivesse sozinho, sem relação com os outros. Mesmo quando se levava em conta o papel do outro, era na perspectiva de um destinatário passivo, que se limitava apenas a compreender o locutor. O educando também era visto assim e vinha à escola apenas para aprender aquilo que o educador tinha para ensinar. Em termos de ensino, passou-se a realizar descrição gramatical de fragmentos textuais recortados principalmente do registro escrito. Priorizavam-se atividades que veiculavam modelos de estrutura gramatical.
Esse modo de entender o ensino de língua ainda hoje se materializa em práticas pedagógicas, por meio de exercícios de treinamento com ativida­des de múltipla escolha e de completar lacunas, que são artificiais e distantes do uso real da língua. Concomitante ao tratamento da descrição da língua, no ensino, há, ainda, fortes ecos da norma e da prescrição gramatical.
Na alfabetização, essa concepção de linguagem apresentou implicações que podem ser identificadas na aplicação prática dos métodos analíticos, que partiam de unidades maiores (historietas, frases e palavras) para unidades menores da escrita (famílias silábicas e letras). Os métodos analíticos, assim como os sintéticos, compreendiam o processo de alfabetização como aquisição do código gráfico (letras, vogais e consoantes, juntando-se para formar sílabas e palavras), dissociado dos usos sociais da língua. Ao se restringir o reconhecimento das letras como simples tarefa de decodificação/codificação, produziam-se leituras e escritas mecânicas, distanciadas dos sentidos. Posteriormente, na alfabetização, ocorreu a junção dos métodos sintéticos e analí­ticos, dando origem aos chamados métodos mistos (ou ecléticos).
A partir de meados do século XX, as pesquisas em psicologia da aprendizagem realizadas por Piaget influenciaram estudos relativos à apropria­ção da escrita pela criança. Estamos nos referindo aos trabalhos de Emília Ferreiro e Ana Teberoski, que discutem as práticas pedagógicas, nas quais o educador não ensina, nem transmite ideias ou conhecimentos, mas facilita encontros e descobertas, e, para isso, usa técnicas que ajudam a desenvolver a subjetividade e a criatividade do educando, dando-se maior valor à originalidade do que ao conteúdo, resultando numa prática pedagógica pautada em níveis (pré-silábico, silábico e alfabético)4. Nessa perspectiva, aguarda-se o momento da construção do conhecimento pela criança. A linguagem perma­nece como objeto de estudo por ela própria, desvinculada do seu contexto de produção. Em termos de implicações políticas, pode-se dizer que as práticas pedagógicas orientadas pelo viés construtivista apresentam pouca preocupação com o desenvolvimento da criança como ser social. Propõe-se trabalhar a partir dos textos dos educandos, com ênfase no sistema gráfico, em detrimento do sentido.
A fragmentação dos textos em frases, sílabas e letras apaga a produção efetiva da leitura, obscurecendo a formação da consciência crítica pela perda da noção de totalidade do real. Tendo-se instrumentalizado a língua e fragmentado a consciência, o registro da história pela escrita se funda numa concepção de mundo que não dará conta de explicar as contradições e os confrontos da história dos grupos sociais. Assim, o ler e o escrever perdem seu "porquê", pois se tornam atividades mecânicas que contribuem para a formação de estudantes não leitores e não escritores.
A terceira concepção define a linguagem como interação. Nessa perspectiva, os homens interagem socialmente mediados pela linguagem, ou seja, ela organiza suas relações sócio-discursivas. Esse entendimento de linguagem vem sendo incorporado no ensino da Língua Portuguesa. Trataremos dessa noção de linguagem no item "Concepção", tendo em vista que é ela que orientará as concepções de ensino de língua e de alfabetização neste currículo.
2 CONCEPÇÃO SOCIOINTERACIONISTA DE LINGUAGEM
Para a Concepção Sociointeracionista, a linguagem é um trabalho coletivo que resulta de um momento histórico, político e cultural, construído em meio às relações de poder, por isso defende-se que ela é mais do que um código ou uma estrutura gramatical, uma vez que (re)produz as relações entre o homem e o mundo.
Por ser coletiva, a linguagem é o lugar de constituição dos sujeitos e de manutenção ou transformação das relações sociais, pois é na interação com o outro que o sujeito constitui seus valores. Antunes endossa o aspecto social da língua ao caracterizá-la como "fenômeno social", inscrito na cultura e na história. Segundo a autora (ANTUNES, 2009, p. 21, grifos da autora), " [...] a língua comporta a dimensão de sistema em uso, de sistema preso à realidade histórico-social do povo, brecha por onde entra a heterogeneidade das pessoas e dos grupos sociais, com suas individualidades, concepções, histórias, interesses e pretensões. Uma língua que, mesmo na condição de sistema, continua fazendo-se, construindo-se".
É preciso considerar que as questões que envolvem o uso da língua não são apenas de natureza linguística, mas cognitivas e sociais, uma vez que dependem do contexto histórico e dos sujeitos que representam fatos sociais por meio do discurso. É fato que, conforme a sociedade se transforma, a língua, em seu constante movimento interacional, se adapta para atender às novas necessidades que emergem.
Ao interagir, os sujeitos produzem novos discursos que são materializados em gêneros do discurso5, internalizando valores sobre o outro e sobre o mundo, (re)organizando o seu pensamento. Isso significa que "A linguagem como interação, [...] assegura a sua dimensão social e cultural, produzida por sujeitos situados sócio-historicamente, os quais agem movidos por determinadas intenções para atingir diferentes propósitos em cada produção dis­cursiva" (NATH-BRAGA, 2013, p. 105). Daí a relevância de se compreender o aspecto intencional da linguagem, alicerçado no contexto histórico, social e cultural.
Pode-se dizer que os discursos são forjados no interior de situações sociais, e a exteriorização desses discursos se dá na relação com interlocutores socialmente e ideologicamente situados, uma vez que o sujeito não é totalmente livre para dizer o que quer e onde quer. A situação social de interação, os interlocutores, o gênero elegido para interagir e o querer dizer do locutor, delimitam, por assim dizer, todo discurso proferido. Bakhtin confirma que os usos da língua emergem das vivências, ou seja, da "situação social mais imediata" (BAKTHIN, 2002, p. 112). Essa situação diz respeito às nossas necessida­des de interação e atendemos a elas com o uso dos gêneros do discurso.
Para essa concepção, a linguagem não é neutra, mas se modifica constantemente para atender aos nossos objetivos, que são diferentes em cada contexto histórico. Assim, o currículo da AMOP, ao incorporar essa concepção, assume os gêneros discursivos como objeto de ensino e a sequência di­dática como princípio e procedimento metodológico privilegiado para a compreensão da linguagem na sociedade. Com essa concepção de linguagem e com a metodologia da sequência didática sugerida, busca-se assegurar situações de interação verbal, que representem a verdadeira realidade da língua para os educandos.
Não há como pensar a linguagem sem os sujeitos, seres históricos e sociais que a produzem. Trata-se, nessa concepção, de um sujeito discursivo, heterogêneo, formado por uma diversidade de vozes. Esse sujeito é interpretado por Geraldi "como o lugar de uma constante dispersão e aglutinação de vozes, socialmente situadas e ideologicamente marcadas" (GERALDI, 1996, p. 52). Não se trata de um sujeito individual, mas coletivo. É esse sujeito que produz e que interpreta os discursos que circulam. Desse modo, nenhum sentido é dado a priori num texto, pois, para o Sociointeracionismo, os sentidos são construídos na situação interativa que constitui a enunciação. Nessa situação, tem relevância, além do sujeito, o contexto mais imediato e o mais am­plo da enunciação, que propiciou a emergência de um ou outro gênero discursivo.
A enunciação, conforme esclarece Bakhtin (2003), pode ser entendida como uma prática social e dialógica, constituída pelo sujeito, pelo momento e pelo espaço social que propiciam a produção de um enunciado ou gênero do discurso. Isso significa que nenhum gênero emerge fora de um contexto, de modo que não podemos compreender o contexto histórico-social como algo exterior ao texto, e sim como constituinte dos possíveis sentidos suscitados por ele. A enunciação é irrepetível e única; o que esclarece uma distinção fundamental em relação ao enunciado, pois a situação sócio-histórica ou enun­ciação, que provoca o aparecimento de um enunciado, nunca será a mesma. Assim, a enunciação é um momento particular que agirá na produção de sentido e que deixará marcas no enunciado, possibilitando múltiplas interpretações. Bakhtin esclarece que "a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação (BAKHTIN, 1995 p. 113), fazendo emergir os gêneros que melhor respondem à necessidade que se impõe naquele momento.
Segundo Bakhtin (2003), toda atividade humana é constituída pelo uso da linguagem, e esse uso se concretiza por meio de enunciados (orais e escritos) concretos e únicos, que são os gêneros do discurso. O enunciado reflete as condições específicas e as finalidades dos lugares sociais e institucio­nais que propiciam a existência de um gênero discursivo. Cada lugar social - a escola, a família, a igreja, a academia - elabora seus "tipos relativamente estáveis" de enunciados, que, para Bakhtin (2003), são os gêneros do discurso. Bakhtin assevera que "os enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros dis­cursivos são correias de transmissão entre a história da sociedade e a história da linguagem" (BAKHTIN, 2003, p. 268), pois não há linguagem fora de um quadro social e histórico, o qual se associa à linguagem, produzindo sentidos. Daí se justifica a importância de considerar sempre o momento histórico que propiciou o surgimento de um discurso e por que tantos gêneros aparecem em cada nova situação de interação.
Bakhtin afirma que somente o "estudo do enunciado como unidade da comunicação discursiva permitirá compreender de modo mais correto tam­bém a natureza das unidades da língua"(BAKHTIN, 2003, p.269); com isso, justifica-se a proposta de ensino da gramática presente neste documento, que é a de propor ao educando uma reflexão sobre as unidades da língua num real contexto de uso, o que só ocorre nos gêneros do discurso que utilizamos para interagir. Vale dizer, ainda, que o enunciado, na perspectiva bakhtiniana, não é apenas produto da enunciação, mas também processo, pois carrega as marcas de suas condições de produção, impregnadas da historicidade, da cultura e dos valores ideológicos de uma época.
Além da compreensão da enunciação e do enunciado, é preciso compreender também a ideia de texto e de discurso, pois ambos referem-se aos gêneros do discurso. Significa dizer que o gênero é formado por um texto e um discurso. É no texto que se inscrevem os discursos, os quais, por sua vez, são atravessados pelas diversas visões de mundo do sujeito que os produziu. Marcuschi (2008) explica que o texto é organizado por um ma­terial linguístico observável, constituído por uma unidade de sentido. Para o autor, "o texto pode ser tido como um tecido estruturado, uma entidade significativa e um artefato sociohistórico. De certo modo, pode-se afirmar que o texto é uma (re)construção do mundo e não uma simples refração ou reflexo" (2008, p. 72). De certo modo, pode-se afirmar que o texto que se constrói no gênero é uma (re)construção do mundo, pois não se produz fora de um contexto histórico.Nos pressupostos bakhtinianos, o texto não apenas reflete o mundo, mas o reconstrói de outro modo, pela interpretação que o sujeito dá aos fatos sociais. O texto pode ser compreendido, então, como uma soma do material linguístico e do contexto sócio-histórico que propi­ciou o seu aparecimento, somado aos aspectos cognitivos que influenciaram o autor em sua produção. Assim, em cada gênero discursivo temos um texto. É o texto que constitui a materialidade linguística de um gênero. Podemos exemplificar dizendo, então, que nos gêneros conto de fadas, notícia, fábula, poema temos um texto.
O discurso, por sua vez, comporta não só a materialidade linguística do texto, como também as condições de produção, pois o discurso é o texto, mas vai além da materialidade, uma vez que aponta para as intenções nele não explicitadas, que é o material extralinguístico, isto é, o que está fora do texto, mas contribui para que determinados sentidos sejam produzidos, como o autor, a função social exercida por esse autor, o lugar social, o momento político, histórico e cultural. É no discurso que se manifestam as ideologias que movem os sujeitos na produção de um texto.
Fiorin (2012) esclarece que o mesmo discurso pode se concretizar em textos muito diferentes, conforme forem os propósitos de interação esta­belecidos. Tanto o discurso como o texto são produtos da enunciação. Por isso se diz que é na realização do discurso que se evidenciam as contradições, as ideologias, as subjetividades, as ironias que regulam o que pode e deve ser dito e o modo pelo qual se diz, embora isso nem sempre esteja explícito na materialidade do texto.
Como visto, os gêneros são constituídos por textos - material linguístico observável - e discursos - ideologias que se refletem em todo dizer. Ba­khtin (2003) lembra que a riqueza e a diversidade dos gêneros são imensas, não só porque as possibilidades de atividade humana são inesgotáveis, mas porque em cada esfera social - jornalística, literária, científica, acadêmica, política, religiosa - existe todo um repertório de gêneros que se diferenciam e que crescem à medida que se desenvolvem. Os gêneros são os textos que se inscrevem nessas esferas cumprindo diferentes funções e dirigindo-se a di­ferentes interlocutores, como as reportagens, editoriais, artigos de opinião, bilhete, carta familiar, conversação espontânea, lista de compras, telefonema, carta eletrônica, bate-papo, entre outros. Diante dessa diversidade, o que determina a seleção de um gênero discursivo é o querer-dizer do locutor. Este, tendo em vista a esfera de circulação de seu discurso, o conteúdo que pretende veicular e seu(s) interlocutor(es), seleciona um gênero (oral ou escrito) que cumpra a necessidade daquele momento. Os gêneros, conforme apresenta Bakhtin (2003), são caracterizados pelo conteúdo temático, pela estrutura composicional e pelo estilo.
Para compreender o conteúdo temático, é preciso considerar que todo gênero é produzido a partir da necessidade de dizer algo a alguém, de infor­mar, de persuadir, de manifestar-se sobre dado conteúdo social. Assim, o tema veiculado por um gênero é um conteúdo ideológico produzido, dizível por meio de um gênero em específico e não de outro. Por isso, há dizeres que se inscrevem em uma notícia e outros que só podem ser dizíveis em um artigo de opinião. Daí defende-se, conforme Bakhtin (2003), que o tema e o gênero expressam uma situação histórica concreta e situada. Bakhtin/Voloshinov esclarece que "somente a enunciação tomada em toda a sua amplitude concreta, como fenômeno histórico, possui um tema. Isso é o que se entende por tema da enunciação" (BAKHTIN,1995, p.129), que é o conteúdo ideologicamente formado, veiculado por meio de um gênero. Em outras palavras, "aquilo que o texto (enunciado) produz ao se manifestar em alguma instância discursiva é o sentido, a significação, o tema" do enunciado (BAKHTIN/VOLOSHI- NOV,1995, p.129).
Assim, para que ocorra a compreensão do conteúdo temático, é preciso que haja a compreensão do leitor acerca do contexto de produção, isto é, da enunciação que propicia o aparecimento daquele gênero, a função social dos sujeitos que produzem e que consomem esse texto, o lugar de circulação, os objetivos que permitiram que aquele conteúdo fosse veiculado. O contexto de produção não é apenas o momento mais imediato que propicia a intera­ção, mas o mais amplo que envolve o momento histórico, político e ideológico que permite que aquele conteúdo seja veiculado.
A estrutura composicional refere-se à composição típica de cada gênero, aqueles elementos que lhe são peculiares e que propiciam a concretiza­ção de dadas ideias e não de outras. Essa estrutura resulta de fatores como a tradição, pois os gêneros nos são dados pelas gerações anteriores que deles se utilizaram e da necessidade que temos naquele momento. Por isso, conforme a necessidade que temos para interagir, escolhemos um telefonema, uma música, um poema, uma entrevista.
Se cada gênero tem uma estrutura, não podemos ignorá-la ao escolhermos um determinado gênero para interagir. Essa escolha, por sua vez, está relacionada, primeiramente, à função social que esse exerce na sociedade. Isso significa que não escolhemos o gênero pela estrutura, mas pela função so­cial que ele desempenha. Bakhtin (2003) nomina o formato e as especificidades de cada texto como estrutura composicional, pois todo gênero possui um formato específico, embora esse não seja totalmente fixo, podendo sofrer alterações. Pode-se constatar isso, por exemplo, com o gênero carta, que sofreu significativas alterações nos últimos anos. Conforme Rojo (2005), a estrutura composicional está relacionada, diretamente, à esfera social que provoca a interação, ao contexto histórico, aos interlocutores, ao tema elegido e à apreciação valorativa desses interlocutores ao tema.
O estilo, como lembra Bakhtin (2003), ou análise linguística como postula Geraldi (2003), corresponde aos elementos da língua que auxiliam na produção de um ou outro gênero discursivo. O estilo apresenta os traços da posição enunciativa do locutor e do gênero, pois cada gênero é composto por determinadas marcas linguísticas. O estilo diz respeito às escolhas do locutor em relação às formas da língua - o vocabulário, a variedade de uso, as formas gramaticais, a organização sintática dos enunciados - que darão 'acabamento' ao enunciado/gênero.
Conforme Bakhtin,
A língua materna - na sua composição vocabular e sua estrutura gramatical - não chega ao nosso conhecimento a partir de dicionários e gra­máticas, mas de enunciações concretas que nós mesmos ouvimos e nós mesmos reproduzimos na comunicação discursiva viva com as pessoas que nos rodeiam. [...] As formas da língua e as formas típicas dos enunciados, isto é, os gêneros discursivos, chegam à nossa experiência e à nossa consciência em conjunto e estreitamente vinculadas (BAKHTIN, 2003, p. 282-283).
Essa interação viva de que fala Bakhtin efetua-se por meio de gêneros e, não por acaso, cada gênero cumpre uma função social diferente. Os gêneros não são compostos livremente, pois, além da estrutura, possuem um estilo (que tanto é do gênero quanto do enunciador), e são propensos à veiculação de um ou outro conteúdo. É o ato de interlocução que determina qual gênero cabe, de acordo com os propósitos enunciativos do interlocutor. Geraldi(2003) esclarece que "o uso da expressão "análise linguística" não se deve ao mero gosto por novas terminologias. A análise linguística inclui tanto o trabalho sobre as questões tradicionais da gramática quanto a questões amplas a propósito do texto, entre as quais vale a pena citar: coesão e coerência internas do texto; organização e inclusão de informações, etc.".
Como se pode ver, o que se propôs não foi uma simples substituição do termo ensino de gramática para análise linguística, mas um outro concei­to para o ensino de gramática, que apresenta a língua como objeto de reflexão em seus usos e práticas sociais, servindo ao texto. Até a década de 1980, quando ocorre um avanço acerca dos estudos sobre o texto, os aspectos da coesão interna do texto e da coerência não eram tidos como objetos de estudo.
Ao apresentarmos um gênero ao educando, temos que considerar os elementos linguísticos necessários à compreensão daquele gênero, pois "não é o ensino da gramática, por si só, que garantirá a compreensão da língua. Ao contrário, ensinar gramática pressupõe ensinar análise linguística. Em outras pala­vras: ensinar a gramática da língua significa refletir sobre sua forma de organização e uso em diferentes contextos de produção (COSTA-HÜBES, 2010, p. 183).
A análise linguística, portanto, está relacionada aos usos que se faz da língua, refletindo sobre os possíveis efeitos de sentido provocados. Cada contexto de produção e cada gênero discursivo respondem a uma determinada situação que permite que algumas construções sintáticas sejam possíveis e não outras. Assim:
A prática de análise linguística é, assim, um trabalho de reflexão sobre a organização do texto (oral ou escrito), tendo em vista a situação social de produção e de interlocução, o gênero selecionado, a seleção lexical que dá conta da situação de interação, os mecanismos de textualização empregados naquele contexto e as regras gramaticais necessárias para a situação de uso da língua. As reflexões necessárias para o uso ade­quado de tais mecanismos podem ocorrer tanto em textos prontos, já publicados, que circulam na sociedade, quanto em textos em fase de produção (COSTA-HÜBES, 2010, p. 184-185).
Nesse sentido, a análise linguística constitui um verdadeiro trabalho em direção à reflexão sobre a expressividade que a língua desempenha em dado texto, em conformidade com a variação linguística possível para aquela situação e os interlocutores envolvidos.
A compreensão do caráter vivo e interacional da linguagem por parte dos educadores exige o encaminhamento de práticas pedagógicas que res­peitem o conhecimento sobre a oralidade, a leitura, a escrita/produção e a reescrita do texto, do qual a criança se apropriou no percurso anterior à sua entrada na escola sem, no entanto, limitar-se a ele.
A oralidade refere-se ao uso da língua falada e se dá, essencialmente, por meio da interação social com outros sujeitos, desde os primeiros anos de vida. Não obstante, o educando não tem a compreensão da linguagem falada em situações mais formais de interação, e é nesse aspecto que reside o papel da escola.
Quando o educando entra na escola, já realiza interações orais nas mais diversas situações cotidianas. Cabe ao educador, no ensino da língua portu­guesa, propiciar ao educando condições para que se aproprie de gêneros orais que ele ainda não conhece, e que exigem um uso mais elaborado da língua, diferente daquele usado em suas interações cotidianas.
Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 83) esclarecem que "não falamos da mesma maneira quando fazemos uma exposição diante de uma classe ou quando conversamos à mesa com amigos", pois em toda e qualquer situação de interação, fazemos uso dos gêneros do discurso; porém, é preciso ter claro que os gêneros orais, assim como os escritos, não são todos da mesma forma, pois enquanto alguns remetem às interações cotidianas e informais, outros remetem a situações de maior formalidade e exigem o uso de variantes linguísticas próprias para tais ocasiões. Assim como os gêneros escritos,
também os orais apresentam estruturas que lhes são próprias.
Explorar a oralidade em sala de aula não significa apenas dar a oportunidade para que o educando fale; é preciso direcionar essa fala, apresentando aos educandos os diferentes gêneros orais que podem ser trabalhados em sala de aula, como, por exemplo, seminários, jornal falado, debates, entrevis­tas, peças teatrais ou outros que o educador julgue relevante. Ao propor o trabalho com esses gêneros, é preciso discutir com os educandos quem será o interlocutor e em qual espaço o gênero circulará, a fim de que o discurso torne-se adequado à situação de interlocução e às especificidades do gênero.
Assim como ocorre na escrita, também na oralidade, o trabalho com os gêneros orais é de desenvolver a competência comunicativa dos educan­dos. Por isso, esse trabalho deve ser sistematicamente planejado por meio de sequências didáticas que oportunizem ao educando a compreensão da fun­ção social de cada gênero, suas especificidades, contextos de produção e de circulação, conteúdo veiculado e estilo. É preciso que as atividades propostas para o trabalho com os gêneros orais estejam de acordo com os objetivos que se propõe com um ou outro gênero.
A leitura, por sua vez, é compreendida como uma prática de letramento, o que, a priori, mostra que ler é ir além da decodificação mecânica de um texto, pois considera-se que o ser humano, mesmo não sendo alfabetizado, realiza em seu dia a dia as mais diversas formas de leituras. Isso é esclarecido por Dell'Isola (1996, p.70), ao afirmar que, "O ser humano é sujeito praticante de leitura, uma vez que decifra, compreende, interpreta, avalia o signo. Sen­do sujeito leitor, simultaneamente, lê palavras, formas, cores, sons, volumes, texturas, gestos, movimentos, aromas, atitudes, fatos. Este sujeito interage com diversas formas de linguagem, através da sua leitura de mundo"
Para a concepção Sociointeracionista e para a compreensão do letramento, considera-se que a leitura vai muito além da decodificação de letras, pa­lavras e frases, pois envolve um conjunto de outras habilidades como a compreensão, a interpretação e a retenção do conteúdo apresentado que depende, entre outros fatores, segundo Koch e Elias (2006), do conhecimento linguístico, que são os conhecimentos acerca da língua; do conhecimento enciclopédico ou de mundo, que se refere ao conhecimento do tema/conteúdo adquirido pelo sujeito acerca daquele tema; e do conhecimento interacional, que está relacionado ao conhecimento que o sujeito tem acerca daquela situação de interação.
A falta de compreensão dos elementos linguísticos que constituem o texto verbal pode afetar a construção de sentido do texto. Daí a importância do educando compreender o vocabulário empregado no texto, a relação que existe entre o título e o texto, o modo como retoma informações de um parágrafo em outro parágrafo, os elementos linguísticos que usa para contestar o que foi dito, como o mas, o porém e outras conjunções adversativas.
O conhecimento enciclopédico ou de mundo também é defendido por Freire, para quem "a leitura de mundo precede a leitura da palavra" (FREIRE, 2011, p. 19). Isso significa que todas as leituras anteriores à aprendizagem do código escrito contribuem para a produção de sentido daquilo que é lido. Assim como Koch e Elias (2006) e Freire (2011), Kleiman (2008) também destaca a importância do conhecimento de mundo para a compreensão de um texto. Segundo ela, ao ler, precisamos ativar o conhecimento que temos do mundo, pois esse conhecimento nos auxiliará na construção de sentido do texto que almejamos. É o que faz com que haja múltiplas possibilidades de leitura para um mesmo gênero e não uma única leitura ou a leitura verdadeira.
Considerando as especificidades do processo de alfabetização, é preciso que a leitura seja planejada e explorada sistematicamente pelo educador, com vistas à formação de um educando leitor. Nesse processo, é preciso considerar que a decodificação é o primeiro passo para a construção do sentido do texto, mas não deve ser o único. O educando deve ser preparado para a leitura que vai além do texto e que possibilita a compreensão do discurso e de todos os entornos que contribuem para a produção de sentido. Para que isso ocorra, é preciso que o educador possibilite ao educando dialogar com o texto, com o contexto histórico, social e cultural e, sobretudo, com o autor do texto.
Como se pode ver, para construir o sentido do texto, várias estratégias interpretativas são mobilizadas pelo conhecimento enciclopédico que o sujeito traz armazenado em sua memória. São esses conhecimentos que fazem com que a interpretação realizada por um sujeito seja diferente daquela realizada por outro sujeito, pois diferentes ideologias são construídas no processo de produção de sentidos. O conhecimento enciclopédico, ou de mundo, que constitui a memória cognitiva do leitor envolve todos os conhecimentos que foram armazenados no decorrer de sua vida.
Nesse sentido, ao selecionar um gênero do discurso para trabalhar com os educandos, o educador deve procurar ativar os conhecimentos prévios que envolvem a memória cognitiva do leitor a respeito do tema apresentado naquele gênero. Para isso, devem ser realizadas as atividades de pré-leitura. Considerando um livro, por exemplo, pode-se explorar a capa, o título, as ilustrações, o autor, a editora, o local de publicação. Esse diálogo inicial pode ser conduzido por meio de questionamentos. Também auxilia nessa compreensão inicial a leitura do texto proposto com ritmo, fluência e entonação.
Segundo Kleiman (2008), o trabalho do educador tem grande importância na ativação desse conhecimento prévio, pois "o educador já conhece o texto, ele pode servir de orientador para as predições sobre o desenvolvimento do tema, fornecendo ao educando aquelas pistas necessárias para a predição" (KLEIMAN, 2008, p.56). Destaca-se, portanto, a importância do papel do docente como mediador do processo ensino-aprendizagem de leitura. É ele que deve conduzir os educandos para a identificação do gênero que será lido, do conteúdo veiculado, do contexto de produção, do autor, do espaço de produção e de circulação do gênero proposto para leitura.
A inferência é outro aspecto que favorece a compreensão do sentido do texto. A inferência, segundo Fulgêncio e Liberato (2012, p. 34), refere-se à "[...] capacidade que o leitor tem de fazer inferência que permite ao autor não colocar no texto toda a informação necessária à sua compreensão. Quando se lê, por exemplo: Enquanto Alaíde estava cozinhando, um pingo de gordura fervendo caiu no seu braço. Infere-se imediatamente que "Alaíde se quei­mou", e por isso essa informação não precisa vir expressa no texto".
Para realizar a atividade de inferência, a princípio, o educando necessitará da mediação do educador, e as atividades propostas a partir do gênero apresentado devem auxiliar nesse processo. A metodologia da sequência didática favorece o desenvolvimento da leitura em sala de aula ao defender o trabalho com diferentes gêneros do discurso, questionando o conteúdo apresentado atrelado ao contexto de produção.
Entendemos, assim, que todo trabalho com a escrita, desde a etapa da aquisição do código e da produção inicial de textos de diferentes gêneros, deve partir sempre da leitura de gêneros diversos, pois é o gênero o ponto de partida e de chegada para o trabalho com a língua portuguesa. Escolher o gênero do discurso como elemento para se refletir sobre a linguagem é romper com concepções de linguagem que primavam apenas pelo ensino estrutu­ral da língua, embora esse também tenha a sua importância no gênero escolhido para o trabalho.
Proporcionar o ensino da língua portuguesa a partir dos gêneros do discurso significa colocar o educando como sujeito de sua aprendizagem, possibilitando-lhe o desenvolvimento de conhecimentos linguísticos e de mundo. Para isso, não basta só se apropriar do código da língua, é preciso com­preender o uso desse código nas diferentes práticas sociais. Isso significa possibilitar ao educando a compreensão e a produção de gêneros discursivos diversos como resumos, quadrinhas, relatos de experiência de vida, histórias infantis, entre outros, de modo que o educando perceba que o uso da língua está materializado nos gêneros discursivos que utilizamos em nossa vida cotidiana.
Em relação à produção de textos32, Geraldi (2003) defende a importância de o educando ter sempre um interlocutor com quem dialogar. Esse in­terlocutor "pode ser real ou imaginário, individual ou coletivo, pode estar mais ou menos próximo" (GERALDI, 2003, p. 119), pois quando se interage, seja pela escrita ou pela oralidade, é preciso que haja um interlocutor e uma razão para isso. É preciso que o educador compreenda que o texto do educando não pode ter como finalidade única servir de diagnóstico para futuras atividades acerca da língua. Antes de tudo, o educando precisa compreender a fun­ção social que o gênero solicitado cumpre na sociedade, que o lugar de produção e de circulação de um gênero não é o mesmo de outro.
Defende-se, portanto, neste Currículo, a importância de o educando dialogar em suas produções, a partir de necessidades e de interlocutores reais. Conforme Geraldi (2003), para que a produção de texto faça sentido é preciso que o sujeito produtor tenha o que dizer (motivo para interagir); razão para dizer; como dizer, supondo sempre os interlocutores e o lugar social onde esse texto circulará.
Toda atividade de produção de textos deve ser mediada pelo educador, que precisa, não só mostrar a função social que o texto cumpre na
32 Usamos a expressão produção de textos para nos referirmos ao material linguístico produzido pelo educando a partir do gênero discursivo proposto em uma necessidade de interação estabelecida. O texto é parte do gênero e constitui o material de trabalho do educador, especialmente quando o seu objetivo for de trabalhar ou compreender os mecanismos linguísticos que constituem o texto em um determinado gênero discursivo.
sociedade, mas também propor a produção de gêneros discursivos diversos, entendendo-os como a materialização da linguagem que responde às necessidades de interação.
É na produção de texto que se pode avaliar a dimensão da subjetividade, pois, ao escrever, o sujeito se coloca no texto, afirmando, negando, argu­mentando e justificando. Ele mostra que não é neutro e que carrega valores de seu contexto histórico e cultural. Geraldi define esse sujeito como "pro­duto da herança cultural, mas também de suas ações sobre ela" (GERALDI, 2004, p. 20). Esse sujeito não é apenas um produto da história, mas é aquele que a interpreta, e, nessa interpretação, (re)constrói a realidade sob outros pontos de vista. Portanto, o texto não é só o resultado das relações sociais, mas também é o lugar de constituição do sujeito, no qual ele manifesta seus valores ideológicos. Nesse sentido, Geraldi (2003) defende a necessidade de considerarmos as condições de produção de cada texto. O educando deve ser compreendido, nesse processo, como um participante ativo da situação de interação, pois é no contato com os textos produzidos que ele elabora e reelabora as suas próprias ideias sobre o mundo. Geraldi (2003, p. 118) assevera que "tentar identificar os elementos que subjazem e dirigem a produção do texto escolar, caracterizando o quadro de suas condições de produção é [...] o objetivo central [...]. Nesse sentido, a identificação de procedimentos e recursos linguísticos utilizados pelo estudante é importante, na medida em que eles ajudam a elucidar as condições de produção da rede escolar".
Nessa perspectiva, Cagliari (2008) defende a produção de texto desde o princípio da alfabetização, pois, como Geraldi (2003), entende que a língua só se efetiva em gêneros e que trabalhar com determinado gênero é ampliar as possibilidades de compreensão da língua na vida cotidiana, porque é o texto que fornece material para pensar concretamente a linguagem. Pode-se dizer, então, que é na produção do educando que os elementos linguísticos e estruturais da língua estarão em uso; é nele que aparecem as características do gênero, o lugar de circulação e o interlocutor a quem o gênero se dirige. É importante lembrar que "a produção de um texto escrito envolve problemas específicos de estruturação do discurso, de coesão, de argumentação, de organização de ideias e escolha de palavras, de objetivo e de destinatário do texto" (CAGLIARI, 2008, p. 122).
É com a produção individual e coletiva, orientada e auxiliada pelo educador, que o educando começará a perceber que cada gênero tem uma orga­nização própria e, por isso, cumpre uma função diferente na sociedade. Por exemplo, quando o educador trabalhar com um bilhete, a criança perceberá que esse texto não é igual a um conto de fadas que lhe fora contado ou a uma quadrinha declamada pelos educandos. Basta, para isso, que o educador, ao trabalhar com diferentes gêneros, chame a atenção para as especificidades de cada um.
Ressaltamos que um dos caminhos para explicar ao educando o que é, para quê e como se utiliza a escrita é a prática da produção de textos coleti­vos (principalmente nos anos iniciais de alfabetização). Assim, quanto mais intensa for essa forma de produção, em que se oportuniza a discussão de ideias e a orientação sobre os processos de registro, maiores serão as condições de o educando produzir diferentes gêneros conforme as suas necessidades.
O que não pode ocorrer com as produções de textos dos educandos é que sejam utilizadas apenas como um pretexto para se ensinar ortografia ou outras convenções da língua escrita, embora essas convenções sejam necessárias. Primeiramente, é preciso que o educador valorize e destaque, nesse trabalho, a importância da produção naquela situação de interação, considerando o que o educando já sabe fazer e entendendo que os aspectos ainda não dominados, revelam-se como seu material de trabalho, e não cobranças direcionadas ao produtor do texto como se ele já tivesse que dominar isso.
Defendemos neste Currículo que a produção escrita deve ser compreendida como trabalho, pois não resulta de momentos de inspiração, mas sim de muito esforço e empenho, construídos pelo constante ir e vir no texto. Cabe ao educador mediar essa etapa tão importante, sugerindo, orientando, propondo discussões, leituras, encaminhamentos e orientações que sirvam de atividades prévias, fornecendo elementos que o subsidiem o educando para tenha melhores condições para produzir o gênero solicitado. As atividades de produção escrita não devem ocorrer somente na finalização de uma sequência didática, mas diariamente, em todas as ocasiões em que for possível solicitar ao educando uma produção espontânea.
A produção escrita, nessa perspectiva, deve ser compreendida como um processo discursivo que se constrói na interação com o outro, pois é esse outro, aquele para quem escrevemos, que direcionará esse dizer, motivando-o a escolha de um ou outro gênero. Por isso, antes que um gênero circule socialmente, é essencial revisá-lo. Propomos que essa revisão seja feita por meio da reescrita.
A reescrita é compreendida com um momento em que o educador deve auxiliar o educando a refletir sobre sua própria escrita e agir sobre ela com o objetivo de torná-la clara, coerente e adequada ao contexto de circulação. Pela mediação do educador, o educando deve perceber que escrever é diferente de falar, portanto, exige conhecimentos específicos do funcionamento da língua. Nesse processo, a intervenção do educador é fundamental, pois é ele que tem condições de perceber as possíveis fragilidades presentes na escrita de seus educandos e, a partir disso, proporcionar momentos para que o educando reflita sobre as convenções da escrita e das diferentes situações de interação.
Esclarecemos que a reescrita consiste em refazer partes ou até mesmo o texto todo, conforme os problemas detectados e a orientação do educa­dor. Por isso, é mostrar ao educando que a primeira produção é apenas um esboço, um rascunho; que escrever é trabalho e demanda reflexão e retoma­das, tanto do texto escrito quanto da proposta inicial, ou seja, daquilo que foi estabelecido como necessidade de interação e do gênero selecionado para atender a essa necessidade.
Nesse aspecto, consideramos que a reescrita é também um meio de estabelecer a relação autor- texto-leitor, proporcionando ao educando um "[...] diálogo do sujeito-autor com o seu produto criado, possibilitando um relacionamento mais interativo com o seu próprio texto" (MENEGOLO; MENE- GOLO, 2005, p.74).
Um dos cuidados que se deve ter na reescrita é de não causar constrangimento ao autor do texto. Por isso, é fundamental ressaltar, primeiramente, os aspectos positivos que o texto apresenta, valorizando a escrita do educando. Outra orientação importante é sobre o distanciamento entre o momento da produção e o da reescrita. Segundo Simioni (2012, p. 104), "[...] uma vez produzida a primeira versão, o educador não deve solicitar, logo em seguida, sua revisão, pois o educando poderá não refletir, num primeiro momento, sobre sua escrita, devido à sua proximidade temporal com o texto. Por isso, sugerimos que se retorne a ele passado alguns dias, ou seja, uma ou duas aulas posteriores à produção".
A reescrita pode ser coletiva ou individual. No caso da coletiva, o texto selecionado deve representar as dificuldades apresentadas pela maioria dos educandos. Outro fator importante nesse processo de reescrita coletiva é que não sejam abordados muitos aspectos da língua em um único texto para que não haja uma sobrecarga de conteúdos, o que pode tornar o trabalho cansativo. Sugerimos que o educador apresente o texto sem erros ortográficos, utilizando os recursos disponíveis (quadro, cópias, multimídia, cartaz etc.). Em se tratando da reescrita individual, a mediação do educador será voltada para as dificuldades específicas de cada educando.
Tanto na reescrita individual quanto na coletiva, o educador deve conduzir o educando a uma reflexão sobre a organização da escrita na folha de papel, a margem, o título, os espaços entre as palavras, o parágrafo, a pontuação, os sinais gráficos, a concordância nominal e verbal, a coerência e a coe­são, pois esses são os elementos que organizam a linguagem escrita. Na fase de apropriação da escrita, é necessário enfocar a análise dos componentes do interior das palavras, ensinando as unidades menores: letra (nome e som), sílaba, bem como as questões de ordem ortográfica.
Como há muitas dúvidas em relação aos critérios que deverão ser considerados na reescrita de texto, o Grupo de Estudos em Língua Portuguesa - GELP33 - elaborou tabelas diagnósticas, conforme anexo, com critérios que servem para auxiliar o educador a identificar o nível de escrita de seus edu­candos. Conforme essas tabelas, o texto deve ser analisado de acordo com três aspectos: 1° Gênero/ situação social; 2° Texto; 3° Aspectos ortográficos. Tendo como base esses critérios, o educador terá um mapeamento do nível de escrita da sua turma, possibilitando as intervenções nos encaminhamentos de reescrita coletiva ou individual.
Nesse documento, concebemos a reescrita como um processo reflexivo da escrita, envolvendo o educando como sujeito-autor-leitor do seu texto, dando ênfase para a adequação do texto produzido à necessidade de interlocução, de modo que o educando saiba interagir por meio da escrita em dife­rentes situações de interlocução.
É preciso considerar que cada gênero produzido apresenta uma determinada variante linguística, pois alguns gêneros, conforme o local social em que são produzidos e que circulam, conforme os sujeitos e a necessidade de interação, são mais formais ou mais informais. Assim, os usos sociais da lin­guagem, efetivados pelos inúmeros gêneros que utilizamos, nos permitem compreender as diferenças dialetais que compõem o universo linguístico no processo de interação 
Considerando essa concepção de linguagem e o gênero como objeto de trabalho com a língua, não podemos desconsiderar as variantes linguís­ticas que circulam no espaço da sala de aula. Do ponto de vista linguístico e estrutural, nenhuma variante da língua é imperfeita ou inferior. Aceitar essas variedades requer o respeito aos dialetos, compreendendo-os como legítimos modos de manifestação de um sujeito historicamente e culturalmente situado. O dialeto considerado padrão não é único e inclui-se entre os demais em condições de igualdade linguística.
Desse modo, o trabalho com a variedade linguística consiste na valorização e no reconhecimento da heterogeneidade linguística como expressão da história e da cultura do educando que não podem ser desprezadas no ensino da língua. No entanto, é papel da escola dar a conhecer a variante culta, relacionada ao uso formal da linguagem, sem silenciar; contudo, as variantes estigmatizadas, sejam elas regionais, sociais ou estilísticas, pois tanto quanto à formal, elas servem à interação.
Pensar no ensino da Língua Portuguesa, nessa perspectiva, envolve pensar em ações (na escola) que favoreçam a interação verbal. Para que isso realmente se efetive, faz-se necessário garantir ao educando, por meio de um trabalho coletivo, compartilhado, o acesso aos diferentes gêneros, pois quanto maior for esse contato, maior a possibilidade de se produzir ideias cada vez mais elaboradas.
33 O GELP é um grupo de estudos iniciado em 2006, que resultou de um projeto de pesquisa de doutoramento realizada por Costa-Hübes (2008), desenvolvido em parceria com a Amop, a princípio, intitulado "O ensino da gramática numa perspectiva textual/discursiva". Participam desse grupo educadores municipais do qual participamos desde a sua criação.
Alfabetizar letrando: Algumas considerações
A compreensão de alfabetização apresentada neste Currículo fundamenta-se na compreensão Sociointeracionista de linguagem, que tem como objeto de trabalho os gêneros do discurso como sendo a verdadeira realidade da língua. Para atender ao que propõe essa concepção, é preciso considerar que a alfabetização vai além da decodificação e da compreensão da estrutura da língua. Isso significa pensar a alfabetização numa perspectiva de letra- mento, desde a aquisição inicial do código escrito.
A alfabetização numa perspectiva de letramento supõe a compreensão da função social dos diferentes gêneros nas mais diversas práticas sociais de interação.
O termo letramento1, referenciado paralelamente à alfabetização, nomina o estado ou a condição de quem faz uso da leitura e da escrita em suas práticas sociais, pois não basta ao sujeito adquirir o código, é preciso que ele participe das necessidades sociais exigidas pela leitura e pela escrita na socie­dade atual. Conforme Soares (2010 p. 18), o letramento refere-se ao "resultado da ação de ensinar ou de aprender a ler e escrever: o estado ou a condição que adquire um grupo social ou um indivíduo como consequência de ter-se apropriado da escrita".
Compreende-se que a alfabetização precisa ir além da apropriação do código, e isso acontece quando se tem o gênero como objeto de estudo, pois não há interação senão por meio de um gênero. É ele que mostra a língua em funcionamento. Daí compreender-se que é por meio do trabalho com dife­rentes gêneros que se pode alfabetizar criticamente, discutindo não apenas a estrutura da língua, mas o conteúdo ideológico veiculado. As normas que organizam a língua são compreendidas então, em função do gênero selecionado, e não de modo isolado.
Conforme Kleiman (2008), as aulas de língua portuguesa devem ser espaços nos quais os educandos possam experimentar formas reais de uso da língua por meio de práticas sociais que contribuam para o letramento desses sujeitos. Essas formas, compreendemos que se dão por meio das situações concretas que propiciam a interação, as quais são mediadas pelos gêneros, orais e escritos, que circulam no cotidiano, por isso a importância de trabalhar com esses gêneros desde o momento inicial de alfabetização.
A alfabetização e o letramento têm sido compreendidos, no contexto educacional, como conceitos distintos; porém, indissociáveis. A alfabetização relaciona-se à aquisição do código escrito, enquanto que o letramento está relacionado ao uso desse código nas relações sociais e, o uso desse código, efetua-se por meio de gêneros, por isso, a importância deles desde o processo inicial de alfabetização. Segundo Soares (2003), alfabetização e letramento são indissociáveis, tendo em vista dois fatores: 1) em atividades de letramento, isto é, em práticas sociais de leitura e de escrita que a alfabetização deve ocorrer; 2) o letramento, enquanto processo de participação social na cultura escrita, está ligado à compreensão e ao domínio do código escrito.
Significa pensar que a alfabetização2, isto é, a ação de ensinar a leitura e a escrita em língua materna, deve ocorrer por meio de textos, que são representados pelos gêneros discursivos, produzidos por alguém e dirigidos para alguém, numa dada situação interlocutiva, regulada pelas suas condições de produção. Por outro lado, implica pensar que o letramento consiste num fenômeno social complexo, discursivo, polissêmico, que entrelaça língua, cultura e sociedade. Assim, a ampliação dos modos de acesso e de intervenção no universo letrado estará vinculada à dimensão sistêmica e discursiva da língua, configurando-se na alfabetização e no letramento.
No entanto, trabalhar com os gêneros do discurso não significa menosprezar o trabalho sistemático de aquisição da escrita que o processo de al­fabetização requer. Nesse sentido, é preciso desconsiderar alguns equívocos que se construíram nesse processo, como a compreensão que, talvez ainda esteja presente na escola, de que o letramento substitui a alfabetização, o que não procede. Como defende Soares (1997), é preciso considerar que essas duas etapas são de igual importância, pois a aquisição da linguagem escrita pode ocorrer por meio dos gêneros que circulam socialmente, compreenden­do a função social desses gêneros e suas especificidades. É necessário que o educando alfabetizado compreenda a importância da leitura e/ou da escrita como forma de participação social no mundo letrado.
Conforme parâmetros do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE, a pessoa que sabe ler, escrever e contar é considerada alfabetizada. No entanto, o domínio desses conhecimentos básicos sobre letras e números pode ser insuficiente para uma participação ativa em práticas sociais me­diadas pela escrita. Conforme Soares (2003), ser letrado é saber empregar a leitura e/ou a escrita, nas diferentes situações sociais, tanto públicas quanto privadas, que exigirem o uso da língua.
Assim, o trabalho com o gênero, considerando a metodologia da sequência didática como se propõe neste documento, deve partir, primeiramente, da escolha do gênero, da compreensão da sua função social, de seu conteúdo, de sua estrutura composicional, até chegar à análise da estrutura interna da palavra da sílaba, da letra, etapas que constituem a apropriação da leitura e da escrita pelo educando.
Dentre os procedimentos essenciais para a inserção da criança no mundo da alfabetização e do letramento, devemos dar especial destaque às ati­vidades que propiciem o desenvolvimento da consciência fonológica, pois há uma série de conhecimentos nesse campo que são necessários, justamente por antecedem a alfabetização propriamente dita. Outros vão se desenvolvendo concomitante à mediação docente, com atividades que explorem, por exemplo, a identificação de palavras que iniciem ou terminem com o mesmo som; a identificação de semelhança sonora entre segmentos de palavras, reconhecendo as rimas ou as aliterações; a produção (oral) de palavras que rimam; a superação do realismo nominal, de modo que o educando seja ca­paz de analisar a quantidade de sílabas de uma palavra. É importante lembrar que isso não se faz isoladamente, mas sim a partir dos gêneros discursivos selecionados para os primeiros anos de escolarização.
Tratamos como consciência fonológica a capacidade de compreender que as palavras são constituídas por diversos sons ou grupos de sons e que elas podem ser segmentadas em unidades menores. Ciello (2000) diz que sob esse termo está a habilidade de reconhecimento da produção de rimas, a análise, a síntese, as reversões e outras manipulações silábicas e fonêmicas, além da habilidade de realizar a correspondência entre fonema e grafema e vice-versa.
Sendo assim, a consciência fonológica, atrelada aos conhecimentos da correspondência entre grafemas e fonemas, possibilita ao alfabetizando uma melhor aquisição do nosso sistema de escrita alfabética e, apesar de ser um conteúdo contemplado ainda na Educação Infantil, vale lembrar que nos primeiros anos de alfabetização é necessário dar continuidade a esse conteúdo, pois ele contribuirá muito para a aquisição do código escrito propriamente dito.
Nesse contexto, algumas especificidades que são próprias da alfabetização precisam ser consideradas, como a apresentação do alfabeto ilustrado, constando os quatro tipos de letras, o nome do desenho que ilustra cada letra destacada. Esse alfabeto deverá estar acima da lousa para que seja visua­lizado pelo educando. Embora a leitura do alfabeto seja feita diariamente, o educador deve trabalhar, sistematicamente, com cada letra, de modo que o educando a reconheça nos diferentes gêneros que estão sendo apresentados aos educandos.
A leitura apontada realizada pelo educador e a pseudoleitura3 feita pelo educando são de fundamental importância no início da alfabetização. Mesmo não sabendo ler convencionalmente, o alfabetizando será conduzido à leitura, pela interferência e mediação proporcionada pelo educador. A vi­sualização do texto, das palavras e das letras, tentando identificá-las e relacioná-las ao que se está ouvindo, é essencial nessa fase de aquisição do código.
Disponibilizar material variado de leitura nas paredes da sala de aula favorece o contato do educando com a linguagem escrita, o que pode ser motivado, diariamente, pela leitura do educador aos educandos, mostrando sempre a função social do gênero lido que pode ser uma história, uma qua­drinha, uma notícia, uma fábula, uma piada, uma parlenda ou qualquer outro gênero. Esse momento de leitura visa familiarizar o educando com a leitura e a escrita, de modo que ele compreenda que o texto escrito veicula ideias e informações.
Nesse processo, não se pode desconsiderar as especificidades próprias da aquisição da leitura e da escrita, como, por exemplo, o trabalho com o alfabeto e as relações entre sons e letras que são categorizadas como: relações cruzadas ou não arbitrárias, arbitrárias e biunívocas. Conforme Vendrús- colo (2000), as relações cruzadas referem-se à escrita diferente para sons iguais. Significa que uma unidade sonora tem mais do que uma representação gráfica possível. Como exemplo, tem-se as palavras representação, carro; cabide, aquarela; guarda, guitarra; fazer, Brasil.
Nas relações arbitrárias, como explica Vendrúscolo (2000, p. 90), "a relação entre sons e letras não é possível. Duas ou mais letras apresentam o mesmo som no mesmo lugar" ; como exemplo, a autora apresenta as palavras casa, cassado; azar, casado. O mesmo ocorre com as letras seguintes:
G e J antes de E e I, como em jeito, gelo;
Z ou S entre vogais, como em riqueza, mesa.
S ou C no começo de palavras, antes de E ou I, como em cebola, semana; silêncio, cicatriz.
S ou Z no final de palavras, como em cartaz, cartas.
S ou X no final de sílaba, precedido por E, como em texto, teste.
C, SC, X, XC, XS, SS como ocorre com as palavras: exceto, pássaro, recibo, exemplo, máximo, nascimento.
O trabalho com as relações arbitrárias não se limita à alfabetização. É um trabalho que deve ocorrer até que o educando as compreenda. Já nas relações biunívocas, cada letra corresponde a um som e cada som a uma letra. Ex.: cabelo, bola, planeta, amplo, vela, vida4. Vale ressaltar da importância de trabalhar com o educando, além das questões fonéticas e fonológicas, o modo de articulação de letras, a coesão, a coerência, o tema do texto, a situação de produção, entre outros.
A opção de se iniciar a alfabetização com a letra de imprensa maiúscula (caixa-alta) favorece a escrita pela criança, pois o traçado é mais fácil, já que, nessa fase ela está desenvolvendo a coordenação motora. Porém, é imprescindível que o educador sempre mostre os demais tipos de letras por meio dos diferentes materiais de leitura que circulam na sociedade. Quando o educando já estiver mais familiarizado com a escrita, o educador pode, aos poucos, ir substituindo a caixa-alta pela manuscrita/cursiva.
A produção escrita deve ser incentivada desde o princípio do processo de alfabetização, por meio de encaminhamentos que incentivem o educan­do a tentativas diárias de escrita espontânea, com a ajuda do educador que deverá, antes de propor uma atividade, discutir o tema sobre o qual ele deverá escrever. É importante que o educando escreva a partir de situações concretas que envolvem o seu cotidiano. Como por exemplo: recontar uma história contada pela educadora, escrever sobre um passeio realizado, produzir um bilhete para ser enviado aos pais, comentar as atividades diárias que envolvem o seu cotidiano. Nesse momento, como em todos os momentos de escrita, é muito importante que o educando tenha o que dizer, já que o seu repertório de conhecimentos e informações ainda é limitado. A mediação do educador é fundamental, ele é que incentivará o educando a produzir, dando-lhe infor­mações e provocando-lhe curiosidade acerca dos temas propostos para a produção.
Enquanto o educando não domina o código convencional da escrita alfabética, o educador deverá ser o seu escriba, na escrita de palavras e de tex­tos. O trabalho pormenorizado com as letras e sílabas, identificando-as foneticamente - considerando o som e fonologicamente - considerando a escrita, é imprescindível para que o educando identifique que há diferenças entre a fala e a escrita.
O traçado da letra, assim como a forma que deve ser registrada no caderno: da esquerda para a direita, de cima para baixo, deve ser trabalhado visando à apropriação das estrutura da escrita. Do mesmo modo, deve-se trabalhar, nesse momento, a compreensão e o uso adequado das margens, das linhas, dos espaços existentes entre as palavras, assim como os sinais diacríticos representados pela pontuação. Esses aspectos podem ser observados na leitura de textos de diferentes gêneros, na produção coletiva de textos e na construção de palavras.
O nome do educando é um texto significativo para se iniciar o processo de alfabetização, daí a importância da construção de crachás e do trabalho com o alfabeto móvel, não apenas para a construção do nome, em caixa alta e manuscrito, mas também para a identificação das letras, a formação de sílabas, a produção de novas palavras a partir do nome. A construção de baterias de palavras, caça-palavras, cruzadinhas, ditado relâmpago, entre outras, realizadas a partir de textos lidos ou produzidos, os quais ajudarão o educando a se apropriar da leitura e da escrita. A alfabetização, atrelada ao letramen­to, parte, portanto, dos gêneros discursivos e também deve amparar-se na metodologia da Sequência Didática para a sua efetivação.
3 OBJETIVO GERAL
O objetivo que se pretende alcançar com o ensino de Língua Portuguesa nos anos iniciais é que os educandos compreendam os mais diversos gêne­ros do discurso em sua funcionalidade, como o alicerce da interação humana que permite o acesso aos bens culturais e à ação efetiva no mundo letrado.
4 PRESSUPOSTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS
Os pressupostos teóricos defendidos por meio da Concepção Sociointeracionista da linguagem podem ser assegurados por meio dos gêneros do discurso que constituem as práticas sociais de uso da língua. Desse modo, o trabalho com diferentes gêneros possibilita a compreensão da função so­cial que a língua desempenha na sociedade. Para efetivar esse trabalho, apresentamos uma proposta de agrupamento dos gêneros, pautada em Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), para os quais devem ser levadas em consideração: as grandes finalidades sociais atribuídas ao ensino, a fim de garantir os domínios essenciais de comunicação oral e escrita, como os aspectos tipológicos e as capacidades de linguagem que eles compreendem. Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004) propõem o seguinte agrupamento:
a)Para atender aos domínios sociais de comunicação da cultura literária ficcional, selecionar gêneros do NARRAR que apresentam como capacidade de linguagem predominante narrar ações por meio da criação de intrigas. Os gêneros do narrar, normalmente, por suas próprias características linguísticas, pertencem à tipologia Narrativa. (Ex.:contos, fábulas, lendas, histórias infantis, quadrinhas, parlendas, cantigas, entre outros);
b)Para atender aos domínios sociais de comunicação que representam a documentação e a memorização das ações humanas, selecionar gêneros do RELA­TAR, que compreendem, como capacidade de linguagem dominante, a representação, pelo discurso, de experiências vividas, situadas no tempo. Os gêneros do relatar, geralmente, também pertencem à tipologia Narrativa, pois envolvem características linguísticas presentes nessa tipologia, como pessoas envolvi­das, tempo, espaço, situação. (Ex: relatos de experiência vivida, relatórios, notícias, reportagens, e-mails, biografias, cartas familiares, bilhetes, entre outros).
c)Para atender aos domínios sociais de comunicação, que envolvem discussão de problemas sociais controversos, selecionar gêneros do ARGUMENTAR, que apresentam, como capacidade de linguagem dominante, a sustentação, a refutação, a negociação de ideias e a tomada de posição. Os gêneros do argumentar pertencem à tipologia Argumentativa. Os gêneros que se inscrevem nessa tipologia têm como características defender um ponto de vista, por meio de uma tese, isto é, a ideia defendida pelo autor. (Ex.: cartas de reclamação ou de solicitação, artigos de opinião, textos publicitários, anúncios, charges, resenhas, entre outros);
d)Para atender aos domínios sociais de comunicação na transmissão e construção de saberes, selecionar gêneros do EXPOR, que apresentam como capacidade de linguagem dominante, a exposição de diferentes formas dos saberes. Os textos que pertencem a esse agrupamento estão diretamente relacionados à tipologia Expositiva/Explicativa, que caracteriza-se pela apresentação de informações comprovadas (Ex.: texto de divulgação científica, seminários, entrevistas, mapas, gráficos, placas, aulas expositivas, entre outros);
e)Para atender aos domínios sociais de comunicação no sentido de instruir e prescrever, selecionar gêneros do DESCREVER AÇÕES, que apresentam, como capacidade de linguagem dominante, a regulação mútua de comportamentos. Os gêneros que se inscrevem nessa tipologia normalmente pertencem à tipologia Descritiva que, geralmente, está a serviço das outras tipologias e tem como característica principal mostrar os detalhes apresentados em um determinado gênero. A tipologia descritiva costuma vir associada à Injuntiva, que tem como pressuposto levar o outro a uma ação. (Ex.: manuais de ins­trução, receitas culinárias, regulamentos, regras de jogo, bulas de medicamentos, faturas, leis, contratos entre outros).
Enfim, ao agrupar os gêneros com os quais se trabalhará do 1° ao 5° ano, devemos considerar, assim como Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 120), que a aprendizagem não é um procedimento unitário, mas sim que ela se revela "num conjunto de aprendizagens específicas de gêneros textuais va­riados". Assim, o trabalho com cada gênero necessita de tratamento diferenciado, uma vez que suas características (linguísticas e discursivas) são distintas.
Para abordar os gêneros discursivos na dimensão desta proposta, acreditamos que o encaminhamento didático-metodológico que melhor atende às concepções de ensino e linguagem aqui defendidas é o da Sequência Didática (SD), proposta por Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004), e reorganizada por Costa-Hubes (2008) para o ensino nos anos iniciais. Trata-se de pensar e de planejar os conteúdos, de maneira sistemática, por meio da elaboração de um conjunto de atividades organizadas em torno de um gênero (oral ou escrito). A finalidade de um trabalho nessa perspectiva é, segundo Dolz, Noverraz e Schneuwly (2004, p. 97),
Ajudar o educando a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe, assim, escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação de comunicação. O trabalho será realizado sobre gêneros que o educando não domina ou o faz de maneira insuficiente; sobre aqueles dificilmente acessíveis, espontaneamente, para a maioria dos educandos; e sobre gêneros públicos, e não privados.
Essa forma de trabalho pode se consolidar por meio do seguinte encaminhamento:
1.APRESENTAÇÃO DA SITUAÇÃO: Toda proposta de produção oral e escrita deve estar pautada numa necessidade (motivo) para que aquela ação se efe­tive, ou seja, trata-se de apresentar ao educando situações de produção verdadeiras, reais, que exijam, realmente, a participação do educando em dada situação de interação.
2.SELEÇÃO DO GÊNERO: Essa necessidade de produção, que provocará um "querer dizer" no educando tendo em vista seu(s) interlocutor(es), exige a seleção de um gênero discursivo (oral ou escrito) que o represente socialmente. Além disso, requer um "saber dizer" embasado num "ter o que dizer", ou seja, requer conhecimento do tema.
3.RECONHECIMENTO DO GÊNERO: Para utilizar-se do gênero selecionado, é preciso, antes de tudo, reconhecê-lo quanto ao seu meio de circulação, à sua forma de composição, à sua organização discursiva, aos seus aspectos tipológicos e à sua estrutura linguística. Para isso, inicialmente, é importante buscar, na sociedade, gêneros prontos, já publicados, que o represente. Por meio da leitura desses "modelos" do gênero, o educando poderá reconhecer, gradativamente, sua forma "mais ou menos estável" de organização. Além disso, o educador poderá encaminhar atividades que explorem esse gênero, organizadas, por exemplo, da seguinte forma:
3.1) Dentre os "modelos" do gênero que está sendo trabalhado, o educador seleciona um para desenvolver as seguintes reflexões (ou atividades):
a)Contextualização sócio-histórica do gênero (quem o produziu, quando, por que, para quem...);
b)Análise de sua organização discursiva e de sua estrutura composicional (que esfera social representa, quais as marcas representativas dessa esfera, que tipologias são predominantes: narrativas, descritivas, argumentativas, expositivas, injuntivas? Nesse caso, o gênero representa que tipologia?);
c)Verificação do estilo de linguagem / análise linguística presente no gênero (arranjos morfossintáticos, escolha do léxico, entre outros);
d)Compreensão do conteúdo temático do gênero por meio de atividades de leitura e de interpretação, momento em que o educador fará, juntamente com os educandos, a análise do conteúdo veiculado pelo gênero, elaborando questões orais e/ou escritas que impliquem no reconhecimento do código, na compreensão do conteúdo global do texto e na localização de informações pontuais, assim como no estabelecimento de relações entre o texto e o contexto mais imediato e mais amplo (social, histórico, ideológico) de produção daquele gênero;
e)Análise do estilo ou análise linguística do texto por meio de atividades linguísticas contextualizadas, que permitam uma reflexão sobre a língua, em sua funcionalidade, o que só ocorre por meio dos gêneros discursivos. O ensino da gramática, na perspectiva da análise linguística, deve garantir ao educando o conhecimento necessário para que ele possa utilizá-la em momentos concretos de interlocução, a partir dos mais diversos gêneros discursivos.
4.PRODUÇÃO ORAL OU ESCRITA: O processo de produção, principalmente no que se refere ao texto escrito, compreende minimamente as seguintes fases:
a)Planejamento do texto (primeiro esboço ou rascunho);
b)Reescrita do rascunho. Não no mesmo dia, após a produção, pois se faz necessário um distanciamento do autor em relação ao texto produzido para que tenha melhores condições de perceber as inadequações cometidas. Num trabalho em sala de aula, a sugestão é retomar o texto no dia seguinte ou dois dias depois.
5.REESCRITA DO TEXTO: As atividades de reescrita do texto são fundamentais para observar se ele é inteligível e interpretável. Portanto, elas se tornam indispensáveis no processo de sistematização do código da língua, o qual pode acontecer da seguinte forma:
a)Levantamento (pelo educador) das maiores dificuldades apresentadas pela turma e reveladas na produção escrita;
b)Seleção de UM CONTEÚDO para ser enfocado no momento da reescrita;
c)Seleção de UM TEXTO que apresente dificuldades no trato do conteúdo selecionado.
d)Análise, pelo educador (ou pelos/com os educandos), do texto produzido;
e)Adequação do texto, reescrevendo (coletiva ou individualmente) partes ou o texto todo a fim de atender com clareza o propósito inicial da escrita.
6.CIRCULAÇÃO DO GÊNERO: Uma vez o texto reescrito e sanados os seus problemas, esse deve cumprir a sua função social, ou seja, deve-se propiciar a circulação do gênero, tendo em vista o(s) interlocutor(es) definido(s) inicialmente.
Considerando que o ensino de língua deve priorizar a oralidade, a leitura, a produção e a reescrita de textos, de acordo com o gênero selecionado, e, tendo em vista que esse expressa situações reais de interação, acreditamos que o encaminhamento metodológico aqui proposto tem grandes possibili­dades de contribuir significativamente para a formação de um sujeito que possa participar de práticas sociais de uso da língua, utilizando-se dos gêneros discursivos que melhor responderem às suas necessidades sociais.
5 CONTEÚDOS
Mesmo que todo o documento do ensino da Língua Portuguesa esteja pautado nos gêneros, e mesmo sabendo que esses dão conta de todas as situações de uso da linguagem, convém, ainda, apresentar uma proposta de conteúdos básicos para cada etapa dos anos iniciais do Ensino Fundamental que são os conteúdos necessários para a compreensão de cada gênero. Não se trata, de forma alguma, de uma relação fechada. Ao contrário, o que pro­pomos são alguns elementos básicos que podem ajudar a conduzir os encaminhamentos práticos que vão desde a seleção do gênero discursivo, passando pelo processo de reconhecimento da função sócio-histórico-ideológica do gênero selecionado, pela leitura e análise de sua estrutura linguístico/discursiva, pela proposta de produção (oral ou escrita) do gênero, sua revisão e circulação final. Tudo isso, pautado no encaminhamento teórico-metodológico da Sequência Didática.
Para tornar mais clara essa proposta, os conteúdos estão distribuídos num quadro que apresenta, inicialmente, duas divisões: na primeira parte, estão os gêneros discursivos propostos para cada ano; na segunda parte, os conteúdos relativos ao trabalho com esses gêneros. Procuramos contemplar, ainda, neste quadro, alguns objetivos específicos, os eixos que norteiam o trabalho com a língua, uma relação de conteúdos e seu enfoque nos diferentes anos.
Em relação aos eixos DA ESCRITA/PRODUÇÃO DE TEXTO, ORALIDADE E VARIEDADE LINGUÍSTICA, LEITURA, ANÁLISE LINGUÍSTICA E REESCRITA, en­tendemos que não devem ser trabalhados separadamente, mas sim de forma articulada, uma vez que um pressupõe o outro. A separação apresentada na tabela é para facilitar a compreensão dos aspectos contemplados por cada um desses eixos.
Além disso, os conteúdos estarão indicados pelas seguintes letras: I, T, A/C que pressupõe a seguinte compreensão: Legenda:
I = Introduzir - momento em que será propiciado, ao educando, o contato e a vivência com textos de diferentes gêneros apenas para percepção. Esse é um momento que antecede ao trabalho sistemático por meio da sequência didática.
T = Trabalhar - início do trabalho com o gênero, proporcionando reflexões sobre a função social (por que foi produzido), o contexto de produção (quem fala, lugar social dos interlocutores, quando, para quem, por que, em que veículo/suporte está circulando, em que forma de registro), por meio de leitura e interpretação oral e/ou escrita.
A/C = Aprofundar consolidando - esse é o momento de desenvolver um trabalho aprofundado com o gênero selecionado. Para o desenvolvimento sistemático desse trabalho, foi proposta a metodologia da Sequência Didática - SD -, que organiza-se de acordo com essa ordem: apresentação da situa­ção de interlocução, seleção de um gênero discursivo, reconhecimento do gênero selecionado (por meio de atividades de pesquisa, de leitura e de análise linguística de texto(s) do gênero), produção (oral ou escrita), revisão e reescrita, circulação dos textos produzidos. Uma vez concluídas essas etapas, enten­demos que o trabalho com o gênero foi CONSOLIDADO. Portanto, APROFUNDAR CONSOLIDANDO "andam juntos" na metodologia da SD.
Conforme a orientação deste Currículo, o item consolidar aprofundando é o ápice do trabalho com o gênero, pois é a ocasião em que o educador lançará mão da sequência didática para realizar um trabalho sistematizado que compreende todas as etapas necessárias para que o educando se aproprie das especificidades de cada gênero.
Os espaços marcados por hífen significam que aquele gênero ou conteúdo proposto será trabalhado, desde que o educador sinta a necessidade. Não utilizamos a nomenclatura retomar para não impor ao educador a obrigatoriedade de trabalhar com esses gêneros, pois tentamos priorizar na tabela os gêneros obrigatórios para cada ano escolar.
Vale lembrar que no planejamento do educador, além dos gêneros propostos no A/C, também deve constar o trabalho com gêneros que são introduzidos e com os gêneros que são trabalhados, embora não se faça, com esses gêneros, toda a sistematização que pressupõe a SD. São ocasiões em que o educando terá o seu primeiro contato com determinados gêneros e que analisará a função social dos mesmos.
Cada município, no entanto, ao elaborar seu planejamento, deve ter consciência da importância de reunir toda a equipe de educadores e, junta­mente, fazer as adequações necessárias para que a proposta atenda às necessidades dos educandos do seu município, considerando sempre o que está previsto neste Currículo. É preciso que haja um estudo no âmbito escolar das equipes pedagógicas e educadores com vistas a assegurar o quadro dos gê­neros e os conteúdos propostos para cada ano, adequando-o à realidade educacional vigente em sua escola, tendo sempre como parâmetro o documento norteador e garantindo os conteúdos mínimos necessários para o desenvolvimento das capacidades de linguagem que cada ano requer.
Compreensão da grafia das palavras (ortografia).